sábado, 7 de março de 2009

Link: Psicanálise lacaniana para estudantes e interessados (http://br.geocities.com/jacqueslacan19011981/lacanlivros/livros03.htm)

O Feiticeiro e sua magia (texto de Levi-Strauss

ver em: http://d.scribd.com/docs/wrnb5m9wekt10m8wrm8.pdf

O feiticeiro e sua magia

Sobre “O Feiticeiro e sua Magia”

Um olhar lacaniano sobre o estruturalismo em Lévi-Strauss

André França

Lacan, em seu Seminário 4, num capítulo intitulado “Para que serve o mito”, discorre sobre a função deste e o momento no qual ele emerge. Lá, ele diz que a construção mítica é a resposta mais adequada e natural que pode um sujeito oferecer diante de um problema que se lhe apresenta e diante do qual ele, sem sucesso, já despendeu energia num esforço de resolução. A solução mítica vem então como um amparo, como uma ilha de segurança no meio do caos e da desordem do mundo.

Esta necessidade de segurança é a mesma que justifica e sustenta a existência de crenças e sistemas de pensamento nas quais se sustentam toda a atividade social de um grupo, podendo mesmo servir de elemento integrador e mantenedor de sua estrutura psicossocial. Lembremos do relato que nos dá Lévi-Strauss, em “O Feiticeiro e sua Magia”, sobre um jovem que, acusado de ser feiticeiro, acaba por reconhecer a veracidade da acusação e criar uma ficção para comprovar sua condição de mago. Não lhe é dada outra escolha, pois se perseverasse em negar a acusação seria morto. A direção em que ele se lança, como nos mostra Lévi-Strauss, é aquela mesma da validação e ratificação de um sistema; um sistema no qual existe a feitiçaria, existe um lugar para um feiticeiro, lugar este que deve estar preferencialmente ocupado, pois dele eles dependem para curar seus doentes e amaldiçoar seus inimigos; mas, para além destas funções necessárias e estratégicas, a presença do feiticeiro lhes traz conforto pois lhes assegura e reforça a construção lógica de mundo na qual leis e efeitos de magia conferem inteligibilidade ao caos.

Desta forma, pensando com Lacan, podemos dizer que, numa sociedade, o mito da magia como um recurso ou atributo humano, surge como uma resposta diante do problema, da necessidade mesmo de se compreender e operar sobre o que se passa à volta; na natureza, no céu, dentro de nossos próprios corpos.

Lacan prossegue dizendo que o mito tem, em seu conjunto, um caráter de ficção. E sobre esta ficção, diz que “apresenta uma estabilidade que não a torna de modo algum maleável às modificações que lhe podem ser trazidas, ou, mais exatamente, que implica que toda modificação implica por sua vez, por essa razão, uma outra, sugerindo invariavelmente a noção de uma estrutura.” (1995, p. 258) Lembremos daquela passagem em que o rapaz, após desistir de se declarar inocente de ser feiticeiro, inventa aquela história de que seus objetos mágicos eram duas drogas que ele conseguia extrair de dois tipos de raízes. No dia seguinte, os juízes mostrando-se insatisfeitos com esta explicação, o rapaz (diríamos, com a maior cara-de-pau), a abandona completamente e parte para uma outra inteiramente diversa, na qual seus poderes dependiam de certas plumas mágicas. Lévi-Strauss nos chama a atenção sobre esta manobra quando diz que o rapaz “melhora sua causa, apresentando versões sucessivas, cada qual é mais rica, mais repleta de detalhes (e pois, em princípio, mais culpável) que a precedente.”; nos introduz assim numa outra lógica, aquela do sistema que deve ser protegido pelos membros da sociedade, aquela mesma de que Lacan fala na citação acima sobre a estabilidade da ficção de que se constitui o mito, ou seja, não importa quantos novos elementos sejam introduzidos na narrativa a título de explicação ou quão díspares e incongruentes eles pareçam, modificação alguma introduzida na narrativa poderá desestabilizar o mito-ficção-sistema, ele próprio possuindo a capacidade de se reorganizar englobando os novos elementos introduzidos para assim preservar e fortalecer a sua estrutura. Esta estrutura é o que há aí de mais importante; é em função dela que todo o resto se organizará, é ela que a todo custo se procura preservar. Os juízes, quando o rapaz inicia a segunda versão de sua história, não o imaginam mentiroso; não se trata aí de julgá-lo mentiroso ou não, não é a veracidade de sua palavra que está em jogo, mas sim a validade e continuidade de um sistema no qual apóiam suas próprias vidas. Não se trata, pois, de questionar ou desnudar a mentira, mas, de ratificar sempre a verdade. Lacan diz que a ficção mítica “mantém uma relação singular com alguma coisa que está sempre implicada por trás dela, (...) a verdade.” (1995, p. 258), que “em toda ficção corretamente estruturada, pode-se constatar essa estrutura que, na própria verdade, pode ser designada como a mesma da ficção.” (1995, p. 259) No plano da estrutura só há espaço para lugares, posições, pouco importando os indivíduos (sujeitos) que os ocupam. Uma vez ocupados os lugares, tudo se passará de acordo com a forma com que estejam estabelecidas as relações entre os lugares da estrutura; estabelecidas, aliás, antes mesmo da chegada dos sujeitos. É por isso que se diz que o estruturalismo apaga o sujeito, porque uma vez dentro da estrutura, ele responderá a partir de funções predeterminadas, nada fazendo valer de suas idiossincrasias; cada deslocamento seu, mudança de posição ou afastamento relativo da estrutura sendo suficiente para que sofra transtornos nos quais não reconhece mais o seu mundo, nem a si mesmo, obviamente, num mundo que não existe mais. Irremediavelmente modificadas as peças no tabuleiro, falta agora, a ele, o seu lugar.

É, evidentemente, pelo que foi posto acima, da estrutura que vem a força dos xamãs. Lévi-Strauss nos mostra que a parte da estrutura que viabiliza a experiência mágica se compõe do lugar daquele que acredita que pode curar ou amaldiçoar, do lugar daquele que acredita que o primeiro cura, e do lugar daqueles que precisam manter vivo e funcionando este dispositivo, que a ele fazem exigências e que com ele se regozijam. Nenhum destes lugares funciona isoladamente, nenhum dos dois sem que o terceiro também se faça presente. Todos os que vivem aí dentro têm a mítica da magia como condição de verdade intrínseca do sistema.



Referências Bibliográficas

LACAN, Jacques. Para que serve o mito. O seminário, livro 4: a relação de

objeto. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; trad. Dulce Duque

Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Feiticeiro e sua Magia. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.